sábado, janeiro 12, 2008

Caio Fernando Abreu - Fragmentos 3

"Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser ao conjunto teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho carente, tigre e lótus".


(Crônica publicada no "Estadão" Caderno 2 de 29/07/1987)

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"De repente, estou só. Dentro do parque, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do estado, dentro do país, dentro do continente, dentro do hemisfério, do planeta, do sistema solar, da galáxia - dentro do universo, eu estou só. De repente. Com a mesma itensidade estou em mim. Dentro de mim e ao mesmo tempo de outras coisas, numa sequência infinita que poderia me fazer sentir grão de areia. Mas estar dentro de mim é muito vasto. Minhas paredes se dissolvem. Não as vejo mais, e por um instante meu pensamento se expande, rompendo limites num percurso desenfreado".
(Itinerário)
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"No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus seus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes, esquecendo deliberado das outras".
(Itinerário)
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"Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a vcocê e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez".
(Primeira carta para além dos muros)

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"Medo não medo não medo não, resistiu. Pois se sentisse medo, pensou vagamente, não poderia contar sequer consigo próprio. E eu só tenho a mim, eu só tenho a mim, repetiu, voltando a cair sobre a cama. Não posso sentir medo, não devo sentir medo, não quero sentir medo."

Limite Branco.
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Não quero lembrar. Faz mal lembrar das coisas que se foram e não voltam. No começo fiquei com raiva, achei que ela não pensou em mais ninguém quando desapareceu. Só nela mesma. Mas a gente nunca pode julgar o que acontece dentro dos outros. Ela queria outra coisa.

(Onde andará Dulce Veiga?)
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"Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável."

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"Mas enquanto ele não chega, vou pingar um ponto final, fechar o caderno, a porta do quarto, chamar o elevador, descer e ficar caminhando horas pelas ruas, ou então me enfiar dentro de um cinema, sem sequer olhar os cartazes ou o nome do filme. Quero ver outras pessoas, outros corpos, outras caras, mesmo que sejam inexpressivos, desconhecidos. Eu também serei inexpressivo e desconhecido para elas, e nesse desconhecimento e nessa inexpressividade mergulharemos todos juntos num filme qualquer, de mãos dadas no escuro, como um bando de meninos dançando a cirandinha."

Limite Branco

segunda-feira, janeiro 07, 2008

Caio Fernando Abreu

"Não sei, até hoje não sei se o príncipe era ele.
Eu não podia saber, ele não falava.
E, depois, ele não veio mais.
Eu dava um cavalo branco para ele,
uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar,
dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse,
fazia com a areia, com o sal,
com as folhas dos coqueiros,
com as cascas dos cocos,
até com a minha carne eu construía
um cavalo branco para aquele príncipe.
Mas ele não queria, acho que ele não queria,
e eu não tive tempo de dizer que
quando a gente precisa que alguém fique
a gente constrói qualquer coisa, até um castelo. "

Caio Fernando Abreu

¨...Tudo isso dói. Mas eu sei que passa, que se está sendo assim é porque dever ser assim, e virá outro ciclo, depois. Para me dar força, escrevi no espelho do meu quarto:¨Tá certo que o sonho acabou, mas também não precisa virar pesadelo, não é?¨
È o que estou tentando vivenciar. Certo, muitas ilusões dançaram - mas eu me recuso a descrer absolutamente de tudo, eu faço força para manter algumas esperanças acesas, como velas. Também não quero dramatizar e fazer dos problemas reais monstros insolúveis,becos-sem-saída. Nada é muito terrível. Só viver, não é?
A barra mesmo é ter que estar vivo e ter que desdobrar, batalhar um jeito qualquer de ficar numa boa. O meu tem sido olhar pra dentro, devagar, ter muito cuidado com cada palavra, com cada movimento, com cada coisa que me ligue ao de fora. Até que os dois ritmos naturalmente se encaixem outra vez e passem a fluir. Porque não estou fluindo.¨ (Cartas- Caio F.)

hilda hist

Fecho os olhos e o mundo inteiro tomba morto;
Abro as pálpebras e tudo de novo renasce.
(Acho que inventei você na minha mente.)

As estrelas saem valsando em azuis e vermelhos,
E a arbitrária escuridão chega a galope:
Fecho os olhos e o mundo inteiro tomba morto.

Sonhei que você me enfeitiçou até a cama
E cantou para mim em desvario, me beijou em total loucura.
(Acho que inventei você na minha mente.)

Deus desaba do céu, o fogo do inferno
abranda:
Vão-se os serafins e os homens de Satã:
Fecho os olhos e o mundo inteiro tomba morto.

Imaginei que você voltaria como prometeu,
Mas envelheço e esqueço seu nome.
(Acho que inventei você na minha mente.)

Eu deveria ter amado um falcão, não a você;
Pelo menos retornam barulhentos quando vem a primavera.
Fecho os olhos e o mundo inteiro tomba morto.
(Acho que inventei você na minha da mente.)

Caio Fernando Abreu

Andei pensando coisas.
O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O nunca mais de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter nunca mais quem morreu. E dói mais fundo- porque SE PODERIA TER, já que está vivo(a). MAS NÃO SE TEM, NEM SE TERÁ, quando o fim do amor é: Nunca.