segunda-feira, novembro 26, 2007

Caio Fernando Abreu

Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.


in Além do ponto

Cecilia Meirelles

Tuas palavras antigas
Deixei-as todas, deixeia-as,
Junto com as minhas cantigas,
Desenhadas nas areias.

Tantos sóis e tantas luas
Brilharam sobre essas linhas,
Das cantigas — que eram tuas —
Das palavras — que eram minhas!

Cecilia Meirelles

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Álvaro de Campos

Nada me prende a nada.
Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Álvaro de Campos

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida...

Fernando Pessoa

Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me...

(...)

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino me conceder,
continuarei fumando.

terça-feira, novembro 06, 2007

Silvana Cervantes

Não sei em que lugar, em que tempo
Me perdi
Não sei bem onde
me deixei
Lembranças de um passado
Um futuro,
nem sei...
Sigo por seguir,
Vagueio no vento sem tempo
No espaço em espasmos
Cigana, profana, mundana
Sou maria, sou Ana,
Talvez Joana...
Sem eira nem beira
Na rabeira de um trem
Quer saber?
Eu não sou ninguém!

Silvana Cervantes

Procura-me perto das águas...
Sempre estarei nela
Purificando meus desejos vontades,
lavando as mágoas, as dores,
Buscando a completa renovação
Embebedando meus poros de esperança
É a vida que me chama através dela
Minha calma, natureza viva, pura...
Queres me achar?
Procura-me nas águas...
Dos rios, dos mares e oceanos
Entra nela e permita que te envolva
Sentirás como que minhas mãos
A te acariciar, lambendo tua face
Envolvendo carinhosamente teu corpo
Sorvendo e acalentando tua alma
Satisfazendo-te por completo
Não restará uma só dúvida em ti
De que sou aquela, que em teus sonhos
Sempre, sempre morou...

Sylvia Plath

Sou prata e exato. Eu não prejulgo.
O que vejo engulo de imediato
Tal qual é, sem me embaçar de amor ou desgosto.
Não sou cruel, tão somente veraz —
O olho de um deusinho, de quatro cantos.
O tempo todo reflito sobre a parede em frente.
É rosa, com manchas. Fitei-a tanto
Que a sinto parte de meu coração. Mas vacila.
Faces e escuridão insistem em nos separar.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Mario Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mario Quintana

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E minha poesia é um vicio triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com tua boca fresca de madrugada,
Com teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...
A súbita alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

Lya Luft

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

Florbela Espanca

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
Sou um reflexo...um canto de paisagem
Ou apenas cenário! Um vaivém

Como a sorte: hoje aqui, depois além!
Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
De um doido que partiu numa romagem
E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
Num mundo de maldades e pecados,
Sou mais um mau, sou mais um pecador...

Florbela Espanca

Amei-te muito, e eu creio que me quiseste
Também por um instante nesse dia
Em que tão docemente me disseste
Que amavas 'ma mulher que o não sabia.

Amei-te muito, muito! Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!...
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade!...

E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar...

O meu sonho morreu... Que desgraçada!
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar...

segunda-feira, novembro 05, 2007

Fernando Pessoa

Lembro-me bem do seu olhar
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posicão incômoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé as canções que meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Cristiano Contreiras

mas imagina que o sono seja puro fetiche,
recolhe os passos para não acordá-lo.
tem medo de acordar o desejo,
mas no sono ele nunca dorme.

vontades que precisam ser definidas,
um acordo no quarto para a noite,
o desejo é um amparo.

fome e amor,
amor e silêncio.
quer acordá-lo para beijar o corpo,
mas será que deve?
milhares de segundos permanece à espera.
o desejo é incondicional, há uma fome presente.

Clarice Lispector

"Estrela perigosa
Rosto ao vento
Barulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de idéias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exatidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.
No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar."

Hilda Hist

" Se todas as tuas noites fossem minhas
Eu te daria, a cada dia
Uma pequena caixa de palavras
Coisa que me foi dada, sigilosa

E com a dádiva nas mãos tu poderias
Compor incendiado a tua canção
E fazer de mim mesma, melodia.

Se todos os teus dias fossem meus
Eu te daria, a cada noite
O meu tempo lunar, transfigurado e rubro
E agudo se faria o gozo teu."

Hilda Hist

III, de Cantares de perda e predileção

"Se a tua vida se estender
Mais do que a minha
Lembra-te, meu ódio-amor,
Das cores que vivíamos
Quando o tempo do amor nos envolvia.
Do ouro. Do vermelho das carícias.
Das tintas de um ciúme antigo
Derramado
Sobre o meu corpo suspeito de conquistas.
Do castanho de luz do teu olhar
Sobre o dorso das aves. Daquelas árvores:
Estrias de um verde-cinza que tocávamos.

E as folhas da cor de tempestades
Contornando o espaço
De dor e afastamento.

Tempo turquesa e prata
Meu ódio-amor, senhor da minha vida.
Lembra-te de nós. Em azul. Na luz da caridade."

Hilda Hist

De luas, desatino e aguaceiro
todas as noites que não foram tuas
Meninos e amigos de ternura
Intocado meu rosto - pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre a procura do teu corpo exato
Livra-me de ti!
Que eu desconstrua meus pequenos amores,
a ciência de me deixar amar sem amargura,
e que me dêem a enorme incoerência de desamar amando.
E te lembrando - fazedor de desgosto - que eu te esqueça.

sábado, novembro 03, 2007

Mario Quintana

"Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar-se um fantasma...
Deixa-me ser o que sou, o que sempre fui,
um rio que vai fluindo...

Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se...

Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...

toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!"

F. Nietzsche

Estou arrogante demais para considerar que alguém possa me amar, isto é, o amor requer a pré-condição de que a pessoa saiba quem eu sou. Tampouco acredito que eu vá amar alguém. Isto iria exigir - assombro dos assombros! - encontrar alguém do
mesmo vulto que eu. Não esqueça que eu desprezo, tanto quanto sinto piedade, seres como Richard Wagner ou A. Schopenhauer, e que acho o fundador do cristianismo
superficial comparado a mim; eu os amei todos enquanto não tinha entendido o que é o ser humano é.

Isto me afeta como um dos enigmas que pensei um dia - Como é possível que estejamos unidos pelo sangue? O que quer que tenha me ocupado, preocupado, ou elevado nunca
trouxe-me um co-sabedor ou amigo! É uma pena que não haja nenhum Deus, porque existiria ao menos um sabedor - Enquanto eu estiver saudável, mantenho bom-humor suficiente para tocar minha função e me esconder do mundo sob esta função: por
ora professor na Basiléia. Infelizmente, tenho estado muito doente e odiaria, inacreditavelmente, as pessoas que eu conheci, incluindo eu mesmo.

Nietzsche
Nice, meio de março de 1885:
Rascunho de carta a Elisabeth Nietzsche

Fernando Pessoa

Divido o que conheço.
De um lado é o que sou
Do outro quanto esqueço.
Por entre os dois eu vou.

Não sou nem quem me lembro
Nem sou quem há em mim.
Se penso me desmembro.
Se creio, não há fim.

Que melhor que isto tudo
É ouvir, na ramagem
Aquele ar certo e mudo
Que estremece a folhagem.

F. Nietzsche

"Tudo vai, tudo volta, eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce,
eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é refeito, eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se separa, tudo volta a se encontrar, eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.Em cada instante começa o ser, em torno de todo o "aqui" rola a bola "acolá ". O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade."

(Nietzsche - Assim Falava Zarastrusta)