quarta-feira, junho 04, 2008

Gilka Machado

Pelo telefone

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.


Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás...
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.


Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.


Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!


Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!...

Caio Fernando Abreu

'Então, que seja doce.
Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce.
Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante.
Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada..'

domingo, junho 01, 2008

Caio Fernando Abreu

“Assim: deixa a vida te lavar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.”



Caio Fernando Abreu-Dama da Noite
Leva-me contigo ao partires
inventa-me uma alma nova,
dá-me a tua mão firme e suave,
ilude-me, se quiseres,
Ainda que sejas só um sonho,
Nas noites de insónia, fictícias,
troquemos abraços e carícias,
imaginemos esta vida noutra esfera,
guardemos para nós esta quimera!
Onde quer que te encontres, neste instante,
não te esquecerei! ficarei à espera
ainda que seja só um sonho cintilante...

Só por hoje o sonho... amanhã voltarei à vida...

Martha Medeiros

Nenhum de Nós


Eu enxergo o que você sente
Mas você responde com a boca, não
Sua boca diz que não
Mas quando não diz nada
Me beija assim
Depois do beijo olho de novo em seus olhos
E vejo o sim
Seus olhos dizem sim

Você retira a mão do meu rosto
Me pede perdão, não
Me beija de novo como quem suplica
O silêncio que diz sim
Te abraço então, agora é o teu corpo
Que diz: não
Teu corpo diz que não

Você pede que eu volte
E nessas idas e vindas
O amor enfraquece
Até o fim
Enfraquece até o fim


Eu enxergo o que você sente
Mas você responde com a boca, não
Sua boca diz que não
Mas quando não diz nada
Me beija assim
Depois do beijo olho de novo em seus olhos
E vejo o sim
Seus olhos dizem sim


Você pede que eu volte
E nessas idas e vindas
O amor enfraquece
Até o fim Enfraquece até o fim
E nessas idas e vindas
O amor enfraquece
Você pede que eu volte


E nessas idas e vindas
O amor enfraquece
Até o fim Enfraquece
até o fim Enfraquece até o fim
Enfraquece até...

Gilka Machado

O RETRATO FIEL


Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Fernando Pessoa

Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.

Clarice Lispector

"Todas as manhãs ela deixa os sonhos na cama,
acorda e põe sua roupa de viver.
Todas as manhãs ela caminha vagarosamente para pegar o ônibus que a levará para lugar nenhum, para ver ninguém.
E todas as manhãs ela imagina como serão as tardes,
Já sabendo a resposta, finge ser feliz todas as manhãs.
E todas as manhãs ela espera pela noite,
espera arduamente voltar ao seu quarto, e ser triste.
É quando ela sente que está assim, completa.
Completamente triste , mas completa.
E quando ela tira a roupa e põe todo o seu corpo em baixo das cobertas quentes e sente que começa a sonhar, é quando ela sorri. Assim, pra ninguém. Mas pra ela mesma. E viver vale a pena."