terça-feira, fevereiro 19, 2008

Caio Fernando Abreu

"Eu não tenho culpa. Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo, que não entenderia nunca. Você também não tem culpa. A culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível. Ás vezes, eu ficava horas pensando que podia valer a pena e então quem sabe podia tudo ser de outra forma... Depois de pensar nisso eu ficava alegre, mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que você resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira, porque a madeira valia mais...E, de repente, outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela, na televisão, no cinema, na rua, em mim mesma e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir, sem saber onde parar, onde pôr as mãos, os olhos, e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar durante muito tempo sem ninguém ver... é verdade, tenho pena de mim e sou fraca: nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesma me dôo agora, mas, ao menos, nesse agora eu quero ser como eu sou, como nunca fui e nunca seria se continuasse, me entende?
Eu não conseguiria. E não, você não me entendeu, nem entende, nem entenderia... você nem sequer soube ou sabe, e você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse, você não poderia mais fazer nada, nem ninguém, eu já não acredito nessas coisas, por isso não te disse, compreende?
Talvez, se eu não tivesse visto de repente o que vi, não sei... no momento em que a gente vê uma coisa, ela se torna irreversível, inconfundível, porque há um momento do irremediável, como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne."

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