quinta-feira, outubro 18, 2007

Caio Fernando Abreu

Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois? (...)
Penso que se conseguir dar algum tipo de ordem nisto que vou dizendo haverá em conseqüência também algum tipo de sentido. E penso junto, ou logo depois, não sei ao certo, que após essa ordem e esse sentido deve vir alguma coisa.

O que virá depois? - pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera. Assim como se depois do chá fumasse lentamente um cigarro mentolado, olhando para longe, aquecido pelo chá, tranqüilizado pelo cigarro, enlevado pelo longe e principalmente atento ao que virá depois deste momento. Faz tempo não tomo chá, e controlo tanto os cigarros que, cada vez que acendo um, a sensação é de culpa, não de prazer, você me entende?

Não, você não me entende. Sei que você não me entende porque não estou conseguindo ser suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro, além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso. Portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois. Antes que me faça entender, se é que conseguirei, queria pelo menos que você compreendesse antes, antes de qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste segundo e nesta próxima frase que direi.


Assim: é um terrível esforço para mim. Se permanecer aqui, parado nesta janela, estou certo que acontecerá alguma coisa grave - e quando digo grave quero dizer morte, loucura, que parecem leves assim ditas. Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.

Não choro mais. Na verdade, nem sequer entendo por que digo mais, se não estou certo se alguma vez chorei. Acho que sim, um dia. Quando havia dor. Agora só resta uma coisa seca. Dentro, fora.



Por vezes fecho os olhos e tenho a impressão que esses telhados intermináveis são a única coisa que existe dentro de mim, você me entende agora? O quê? Sim, tenho vontade de me jogar pela janela, mas nunca foi possível abri-la. Não, não sei o que gostaria que você me dissesse. Dorme, quem sabe, ou está tudo bem, ou mesmo esquece, esquece. Não consigo. Quando vomito sobre o pão, não consigo comer nem vomitar depois. Gosto de vomitar, é um pouco como se conseguisse chorar. Quem sabe você conseguiria pelo menos me ensinar um jeito de vomitar sem precisar comer?

Apesar das minhas unhas crescidas, ainda não estão longas nem afiadas o suficiente para que possa cravá-las em minha própria garganta. Sim, devo ter lido isso em algum livro. Mesmo dito assim, talvez seja essa a única saída. Gostaria de evitá-la.
Dentro de mim, não consigo deixar de pensar que há alguma espécie de sentido. E um depois.

Quando penso nisso, é então como se alguém dançasse sobre esses intermináveis telhados de dentro de mim. (...) Num grande salto aberto, esse alguém que dança alcançaria a janela abrindo-a com um leve toque das pontas dos dedos. Quase sempre tenho certeza que deve ser você.

Não, não diga nada. Prefiro não saber que não. Nem que sim. Você me despreza por estar aqui assim parado? E outra vez, não diga nada. Não consigo ver claro seu rosto que os panos e os cabelos cobrem por inteiro, soprados pelo vento. Sei também que, após o salto, você me tomaria pela mão para que eu finalmente levantasse daquele segundo degrau, atravessando a rua de terra solta quente vermelha para, quem sabe, mergulharmos juntos na água fresca do rio. Sei ainda que você me tiraria daquele quarto escuro, entre véus e teias, e mataria um a um os morcegos, para que sentássemos à frente da casa, sem os outros, espiando a queda vertical das estrelas na noite quente de janeiro.

Queria pensar que é esse o sentido, que será esse o depois. Não sei se posso. Há dias, como hoje, em que por mais que minta sequer con - Dá-me mais vinho, porque a vida é nada - sigo ver você, que o vento rouba dos panos. Tudo isso me cega. Leva-me daqui, eu peço.




trecho de luz e sombra

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